O cliente tem sempre razão.
A afirmação é normalmente atribuída ao empreendedor britânico Harry G. Selfridge, que há mais de cem anos criou uma loja de departamentos que leva seu sobrenome e se tornou um ícone de consumo.
Mas o cliente tem sempre razão mesmo?
Essa dúvida atormenta todo e qualquer comerciante todos os dias, assim como perturba insistentemente qualquer indivíduo cujo trabalho dependa minimamente de relações com algum cliente. A complexidade das relações negociais no mundo contemporâneo não poucas vezes põe em questão máximas desse quilate.
Só que, sim, em princípio, o cliente tem sempre razão. A regra sobrevive.
Mas a razão tem limites – e a do cliente não foge a essa exceção que serve para qualquer regra. Resta, de qualquer modo, a quem se defronta com um cliente difícil o fato incontornável de que será preciso lidar com ele, mesmo que isso signifique enorme sacrifício.
Cabem, também, muitas considerações quando se trata do reconhecimento da extensão desses direitos da parte adquirente de um bem ou serviço – havendo necessidade, porém, antes de elencá-las, de dar contornos mais precisos ao que se chama de cliente nesta terceira década do século.
Vale recordar, para dar uma base comum a essa análise, que vivemos a era do marketing 5.0, definido pelo papa do mundo comercial Philip Kotler como o tempo em que máquinas interagem com humanos para atendimento de necessidades e oferecimento de experiências a partir de algoritmos preditivos. Isso permite que aplicações de inteligência artificial descubram carências dos clientes e revelem oportunidades para os provedores de soluções antes mesmo que determinado consumidor tenha consciência de que precisa de alguma coisa.
Por outro lado, nesse cenário, em que todos os tipos de relacionamento se entrelaçam, o cliente se tornou omnichannel. (“Omni”, do latim, significa tudo. “Channel”, palavra inglesa, quer dizer canal.) Ou seja, ele está presente em vários universos – físico e virtual (e brevemente metavérsico) – e se utiliza de diversos canais de comunicação e de experiência na busca de soluções. Multicanal talvez seja uma boa definição em português.
Então, dadas essas condições, às quais se soma a emergência no mundo dos negócios da geração Y – nascida entre 1980 e 1990, educada em formato digital e reconhecidamente exigente na completude do atendimento –, tem-se que os chamados direitos do cliente expandiram-se nos últimos tempos.
Do mesmo modo, se antes havia o comprador que devolvia o peixe no dia seguinte à compra alegando que não era fresco e aquele que se recusava a pagar o aluguel de smoking porque o paletó apertou-o durante uma festa, há agora novos perfis de clientes cuja insatisfação precisa ser manejada com muita habilidade.
Resumindo, o cliente continua a ter razão, do ponto de vista do marketing, mesmo quando não tem nenhuma do ponto de vista do bom senso. Mas lidar com esses abusados, ou inoportunos, para usar um eufemismo, é um exercício que aperfeiçoa as qualidades do empreendedor e acaba, a médio e longo prazo, melhorando o cenário dos negócios, por mais que doa a cabeça de quem tem de lidar com isso.
O perfil dos clientes inoportunos
É interessante repassar as principais características dos abusados… Ou, melhor, dos inoportunos, que sempre aparecem no balcão, no telefone, no SAC, no site, no e-mail, no WhatsApp, no Reclame Aqui e até no bar da esquina, durante aquela pausa para o cafezinho:
1. O infrator de regras
Ele sempre acha que a legislação foi feita para os outros ou apenas para atrapalhá-lo. Se esquece um documento, sugere enviar depois ou que se ignore a exigência. Se chega atrasado, quer passar na frente de quem se esforçou para chegar no horário.
O melhor meio de enquadrá-lo é antecipação, por meio de avisos – nas paredes, nas mensagens, no website, nas gravações telefônicas – que deixam claras as exigências a se cumprir na conclusão de determinado negócio. Essa solução tira do infrator de regras sua maior arma de argumentação: “Mas ninguém me avisou!”
2. O encrenqueiro
Esse, diante de qualquer percalço ou mal-entendido, cria confusão e muitas vezes ofende quem o está atendendo.
Não há antídoto que evite o aparecimento do encrenqueiro, mas existem muitos treinamentos disponíveis para dar ao pessoal de atendimento a segurança e a autoconfiança necessárias para enfrentar tais clientes. Quase como regra geral, ele costuma baixar a crista quando se depara com pessoas que mantêm a calma e a civilidade diante de seus arroubos. A frase “vamos ajudá-lo a superar esse inconveniente” dá bons resultados na hora de contê-lo, mas nem sempre.
3. O inflamável
Ele joga gasolina no fogo. Se algo dá errado, fala alto, para chamar a atenção de outros clientes, ou escreve imediatamente para a ouvidoria, quando não manda cartas aos jornais e paga até outdoor para denunciar um comerciante. Em muitos casos, é tratado como herói dos ultrajados pela ganância capitalista. Pode acontecer que tenha alguma razão, mas suas atitudes são sempre desproporcionais à realidade.
Paciência e documentação detalhada de cada passo de qualquer negociação são as melhores armas para se defender desse tipo de cliente. Tanto quanto possível, sem constranger a pessoa, vale também tornar públicas as ofertas de solução do problema que ele eventualmente apresenta, para evitar a formação de torcidas que, mal informadas, podem estimular novas ações do cliente inflamável.
4. O espertalhão
Esse é um clássico. Se há um ovo quebrado na caixa, ele quer uma dúzia como indenização. Se foi vítima de um abalroamento no trânsito, tenta fazer o seguro pagar uma reforma completa do seu carro.
Para enfrentar o cliente que quer tirar vantagem de situações adversas, a saída é documentar toda a relação. Câmeras de vídeo, e-mails, recibos, documentos rubricados de telefonemas gravados são imprescindíveis para evitar riscos. Principalmente porque o espertalhão costuma aparecer depois de descobrir uma falha em algum processo, quando pode ser tarde demais para comprovar que não houve nenhum problema.
5. O detrator
Assim como o inflamável, ele é um especialista em propaganda negativa, mas não precisa de motivo para sair falando mal de um empreendimento qualquer. Com ou sem a matéria-prima de uma experiência insatisfatória, ele ataca a reputação da outra parte.
É um tipo que exige cuidado muito especial da parte de quem é atacado. Só mesmo quando não se encontra nenhum pelo no ovo que ele está denunciando é que se pode agir legalmente.
Curiosamente, esse perfil costuma ser também o que mais facilmente retira suas acusações quando confrontado objetivamente (mas sem excessos, claro). Uma saída lateral para manejar esse tipo é também ignorá-lo, quando se tem certeza de que ele não tem nenhuma razão. O detrator muitas vezes quer audiência e contestação. Quando não lhe dão atenção, logo arranja outra causa para se envolver.
O que não falta é nomenclatura para essa variedade de clientes. Empresas muitas vezes adotam nomes diversos para os inoportunos ou abusivos: clientes tóxicos, inconvenientes, problemáticos, difíceis e por aí vai.
No entanto, as particularidades de cada perfil exigem atendimento específico e muito, muito treinamento, das equipes que se relacionam com eles, direta ou indiretamente.
Mas, como bem sabe quem vive o dia-a-dia de relações comerciais ou de serviços, há também boas contrapartidas às características, digamos, não tão construtivas de muitos clientes. Vejamos dois perfis que compensam plenamente os problemáticos.
O cliente promotor
Em algumas modalidades de atendimento, os clientes estão tão satisfeitos em ver seus problemas resolvidos, suas necessidades atendidas e suas expectativas consideradas que se tornam promotores do estabelecimento que os atendeu ou do prestador de serviço que lhes deu atenção.
Se alguém tem dificuldade em localizar esse tipo de cliente, basta consultar a área de avaliações dos sites de hotéis, por exemplo, para perceber como é grande a quantidade de pessoas que faz questão de registrar boas impressões de suas experiências e como essas são generosas na escolha de seus adjetivos.
São essas avaliações, por sinal, que dão credibilidade à prestação de serviços desses sites e, por outro lado, também às críticas negativas que não poucos clientes registram nesses espaços. Quem tem um serviço ou estabelecimento que pode receber esse tipo de avaliação deveria monitorar dia e noite os comentários de seus clientes – para eventualmente premiar os promotores, recuperar os insatisfeitos e conhecer melhor os abusivos.
O cliente apóstolo
Sabe aquele sujeito que, quando responde a uma pesquisa sobre a qualidade de um produto, diz que toparia pagar mais por aquele bem, tal o nível de satisfação que alcançou? Então, esse é o cliente apóstolo.
Lauren Wright, professora norte-americana pioneira do marketing de serviços, define o cliente de apóstolo como aquele sonhado por toda empresa.
Ele adora compartilhar seu entusiasmo com outros clientes, sente que suas expectativas foram ultrapassadas e, no mundo dos grandes negócios, não raramente torna-se acionista do empreendimento que motiva sua satisfação.
Criar apóstolos, assim como administrar e reconverter os clientes infratores ou encrenqueiros, deve ser meta fundamental para todo empreendedor. E apenas o atendimento excelente, mesmo para clientes indiferentes – outro perfil a ser estudado –, consegue dar base para se alcançar esses objetivos.
Um detalhe importante é saber reconhecer o quanto os clientes mais difíceis fazem o negócio evoluir, na medida em que, sem comprometimento emocional, apontam geralmente detalhes que merecem aprimoramento.
Vale sempre lembrar que é diante das adversidades que evoluímos e aprendemos. Quanto mais sua marca agradar, maior será a chance de ela ser o queridinho de todos os seus usuários.
Por Gilberto Cavicchioli
Consultor de empresas, professor em pós-graduação e MBA em grandes Escolas de Negócios do Brasil.
Dirige a empresa Cavicchioli Treinamentos cavicchiolitreinamentos.com.br